Economia Solidária e Saúde Mental: relato de uma experiência andreense

25/04/2024 08:09

 

Economia Solidária e Saúde Mental: relato de uma experiência andreense[1]

Por Aline Taconeli

 

Podem os valores e práticas da Economia Solidária transformar vidas? Esta é uma pergunta provocativa que fiz a mim mesma por anos e que me fez trilhar muitos caminhos para buscar respondê-la. Antes de adentrar na resposta que encontrei, me apresento. Sou moradora de Santo André, no ABC Paulista, psicóloga formada na Fundação Santo André, psicanalista e professora no ensino superior. Partindo do território do ABC, tido por muitos como terra de sindicalistas e “peões”, fui admitida como pesquisadora na capital, em nível de pós-graduação, na Cidade Universitária, na renomada USP. Além dessa apresentação curricular, me apresento um pouco mais pessoalmente dizendo que desde sempre nutro grande interesse pelas “subjetividades[2]” que não se encaixam nas normatizações sociais. Lendo o livro “História da Loucura” do filósofo francês Michel Foucault (2009) na graduação em Psicologia, transformei meu interesse em objeto de pesquisa acadêmica sobre a loucura. Assim apresento o lugar de onde parte esse relato que busca responder a pergunta que abre esse texto, se inscrevendo a partir da realização da minha pesquisa de doutorado dentro de um equipamento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) no município de Santo André, onde encontramos oficinas de geração de trabalho e renda guiadas pelos valores e práticas da Economia Solidária.

Foi lá no NUPE (Núcleo de Projetos Especiais) situado no bairro Camilópolis, “do outro lado do rio”, como costumam dizer alguns andreenses, entre os anos de 2017 e 2023, anos estes atravessados, dentre outras coisas, por uma pandemia e por obscurecimentos dos direitos sociais em diversos níveis, tanto nacional, quanto mundialmente. O NUPE é um espaço que abarca diversos coletivos de geração de renda para pessoas com transtornos mentais, desde leves até severos e persistentes, uma boa parte delas egressa de internações psiquiátricas, além de muitas outras atendidas em diversos outros equipamentos de saúde dentro da RAPS. Esse espaço nasce como uma iniciativa dentro daquilo que se chama por “reabilitação psicossocial” (Brasil, 2011; Saraceno, 2001), um jeito de dizer que as políticas públicas de saúde mental promovem ações para reinserir pessoas com dificuldades para viver em sociedade dado seu sofrimento e adoecimento psíquico, que se desdobra também em sofrimento e limites de sua vivência no mundo social. No caso do NUPE, essa reinserção se dá por meio do trabalho. E não um trabalho qualquer. Um trabalho nos moldes da Economia Solidária.

A economia solidária é outro modo de produção, cujos princípios básicos são a propriedade coletiva ou associada do capital e o direito à liberdade individual. A aplicação desses princípios une todos os que produzem numa única classe de trabalhadores que são possuidores de capital por igual em cada cooperativa ou sociedade econômica. O resultado natural é a solidariedade e a igualdade [...] (Singer, 2002, p. 10).

 

No NUPE, temos o coletivo C.U.P.I.N.S. (Central Unida de Pessoas Inventando Novas Saídas) que é um dos grupos que trabalha com geração de renda a partir dos valores e  práticas da Economia Solidária dentro do campo da Saúde Mental. E, esses “cupins” trabalham com madeira. Xilogravura. E também com silk screen, estampando em camisetas mas também em diversos outros tipos de materiais. Minha aproximação com o trabalho do coletivo e com alguns dos C.U.P.I.N.S. se deu durante meu estágio profissionalizante obrigatório em Psicologia Institucional durante a minha graduação, mais especificamente há quase uma década, lá no ano de 2015. Esse “cupinzeiro” não só me apresentou a pessoas incríveis dentro desse coletivo, mas também me atraiu pela própria essência do serviço prestado, voltado para a integração dessas pessoas na sociedade. Motivada por um desejo ardente de compreender mais profundamente esse processo e contribuir de alguma forma para sua realização, embarquei em um projeto que brotou dessa experiência estagiando em Psicologia, evoluindo para uma pesquisa de mestrado e, posteriormente, após excelente êxito no exame de qualificação, meu estudo foi indicado para se tornar uma tese de doutorado direto[3].

Aqui nesse relato, quero apresentar brevemente como os valores e, sobretudo a prática, da Economia Solidária transformou a vida daquelas pessoas. Começo dizendo que o trabalho humano, de forma ampla, produz distintas realidades subjetivas, distintas formas de ser e agir, desde os tempos mais remotos. Nos domínios da Saúde Mental, o trabalho tem se entrelaçado com a loucura igualmente desde os tempos mais antigos, muito antes da concepção e criação do manicômio, espaço que se apresentou como de torturas e maus tratos, entre eles, a prática do trabalho forçado. A partir do ímpeto insurgente da Luta Antimanicomial, movimento que buscou colocar fim aos espaços físicos e simbólicos do manicômio, essa relação entre trabalho e loucura vem sendo incessantemente transmutada, e são justamente essas metamorfoses que têm sido objetos de minha indagação e que resultaram na tese de doutorado.

Hoje mais contemporaneamente, após a promulgação da lei de nº 10.216 de 2001[4], conhecida como a “Lei da Reforma Psiquiátrica”, há a persistência de resistências tenazes à lógica social hegemônica, hoje neoliberal, que engole tudo e precifica tudo. Além dos grandes movimentos como o da Luta Antimanicomial, presentes em território brasileiro e mundo afora, persistem movimentos sutis que não se satisfizeram com a promulgação da lei, com o progressivo encerramentos dos manicômios e nem com a institucionalização das políticas de Saúde Mental. Esses movimentos, que podem ser grandiosos ou quase imperceptíveis, encontram um terreno fértil de atuação: o cotidiano.

Às vezes unidos em causa comum, outras vezes isolados em seus propósitos, indivíduos e coletivos que travam essa batalha estão constantemente forjando novos caminhos, novas práticas dentro e fora do campo da Saúde Mental, buscando ir além da desinstitucionalização total[5] e da criação de serviços substitutivos ao manicômio (como os CAPS e o próprio NUPE) Em outras palavras, tais movimentos não estão satisfeitos como os avanços até aqui alcançados no campo da Saúde Mental, mas seguem esforçando-se para resgatar os princípios de autonomia e respeito à diversidade que frequentemente se perdem na burocracia e nas contradições das políticas institucionais. Esses movimentos só podem florescer no território da ética – um ethos, uma forma de existência – ao fomentar espaços para a geração de processos subjetivos desalinhados, que se contrapõem às formas unidimensionais de subjetivação da lógica dominante. Eles se erguem como resistências, defendendo a criação de espaços onde as diferenças não sejam excluídas, gerando compromissos situacionais e fluxos emancipatórios, ainda que estejam inevitavelmente inseridos num contexto mais amplo, regido pela crueldade da lógica neoliberal. E é por isso que são reconhecidos como movimentos críticos, contra hegemônicos, recusando-se a serem inteiramente moldados pela hegemonia estabelecida.

Assim é o CUPINS, como uma proposta dentro das políticas de Saúde Mental, onde foi possível observar que a interação e cooperação com a Economia Solidária emerge como um campo possível para a realização de devires minoritários – como exposto por Guattari (1981) – no dia a dia, como a união e a movimentação dos pequenos no cotidiano. Trata-se de uma agenda ética e política que não busca apenas a inclusão social dos “loucos” no reino dos “normais”, mas sim a construção de um espaço social capaz de abraçar as diferenças sem estigmatizá-las ou segregá-las. Uma heterotopia (Gallo, 2015), um lugar outro, diferente, único, onde a participação econômica e social da loucura seja vista como uma atitude emancipatória em relação ao modus operandi da agenda neoliberal, criando espaços e escapando pelas fissuras, encontrando saídas nas brechas da forma hegemônica de governar, inventando novos modos de existência, assim como “cupins” criando seus cupinzeiros. Assim, são produzidas subjetividades heterotópicas. Assim se produzem os C.U.P.I.N.S.

Durante a trajetória da pesquisa de campo realizada no doutorado, busquei vivenciar a concretude da convivência no NUPE com o C.U.P.I.N.S., em sua materialidade, tentando encontrar no cotidiano, práticas diferentes do mundo neoliberal lá fora. Busquei encontrar atitudes que fossem contra hegemônicas por parte dos sujeitos envolvidos nessa iniciativa de geração de renda e saúde mental. Busquei encontrar atitudes de resistência em relação à governança neoliberal no cupinzeiro. E encontrei. No NUPE, e especificamente no contexto dos C.U.P.I.N.S., observamos o surgimento de sujeitos que estão construindo um ethos de resistência dentro de uma lógica de trabalho – autogestionário – que aponta para a possibilidade de criar uma nova subjetividade em oposição àquela que historicamente se impôs sobre a loucura. Busquei conhecê-los em seu dia a dia, dialogar e me relacionar com eles, visando identificar possibilidades, pontos fortes e desafios, linhas de força e fragilidades que emergem das relações e do espaço.

Ao adentrarmos o universo do C.U.P.I.N.S., me deparei com a intrincada teia de processos em movimento, tecendo uma variedade de padrões, como a “Teia de Trabalho”, nome da cooperativa “guarda-chuva” que abarca além do C.U.P.I.N.S., outros coletivos. Alguns desses padrões subjetivos coletivos remontam a tempos distantes e longínquos, de sofrimento, estigmatização e “loucura”, de modo que sua origem pode ser rastreada até o cotidiano hoje, comparando o passado com o estado atual das coisas. Inicialmente o que podemos sintetizar aqui neste texto é que a partir de um indivíduo tido como “louco”, foi-se tecendo a figura de um “sujeito-anormal”, como foram chamadas essas pessoas fora do padrão da sociedade  em em meados dos séculos XVIII e XIX (Portocarrero, 2002). Desse “anormal”, rotulado pouco depois como “doente mental”, emergiu um “sujeito-usuário”, nomenclatura adotada para as pessoas que utilizam dos serviços públicos das RAPS ao redor do país. Do usuário, desdobrou-se um “usuário-trabalhador”, nomenclatura adotada no NUPE inicialmente. E, do usuário-trabalhador, floresceu a nomenclatura “trabalhador”, uma “única classe de trabalhadores” (Singer, 2002, p.10), rompendo muitas barreiras em direção a novos horizontes, especialmente se considerarmos a relação da loucura com o trabalho ao longo da história. Hoje, a loucura permeia as cidades, penetra nos meandros do mercado, infiltra-se no mundo do trabalho e até mesmo na esfera da moda. A loucura, de território colonizado pelo saber e exercício de poder médico, tem rompido e adentrado distintos territórios, tanto concretos quanto simbólicos.

Esses sujeitos, antes à margem das cidades, agora ocupam o centro do palco. De dependentes da filantropia e de programas governamentais, transformaram-se em consumidores com poder aquisitivo. De meros objetos de trabalhos forçados, tornaram-se trabalhadores engajados de forma coletiva e organizada, com propostas autogestionárias. Da condição de despojados, vestidos apenas com as vestes da instituição, ascenderam às passarelas e às roupas de grife. Dos destroços dos lixões à luxuosa avenida Oscar Freire. Este é o retrato daquilo que os “cupins” têm feito com o que foi feito com eles. Este é o movimento de tessitura, de estamparia, de xilogravura subjetiva que se desenrola no cotidiano do C.U.P.I.N.S. E, é possível observar ainda a emergência de novos desenhos que estão sendo “entalhados na madeira”, surgindo desse entrelaçamento do trabalho autogestionário com a saúde mental, apontando para o porvir.

Assim, podemos finalizar esse texto dizendo: sim, os valores e práticas da Economia Solidária transformam vidas. Mas, não de forma isolada, como uma ideologia. Sim, com muita luta, resistência, engajamento, coletividade, insistência, devires minoritários. No cotidiano, e somente nele. 

Referências

Foucault, M. (2009). História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Editora Perspectiva.

Singer, P. (2002). Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo.

Brasil. (2011). Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), Ministério da Saúde, Gabinete do Ministro. Recuperado de: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt3088_23_12_2011_rep.html.

Taconeli, A. S (2023). Economia solidária, saúde mental e subjetividades: governamentalidade e resistência em um programa de geração de renda no município de Santo André, SP. Tese (Doutorado em Psicologia Social) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2023. doi:10.11606/T.47.2023.tde-07122023-103322. Acesso em 23 de abril de 2024.

Portocarrero., V. M. (2002). Arquivos da loucura: Juliano Moreira e a descontinuidade histórica da psiquiatria [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ.

Saraceno, B. (2001). Libertando identidades: da reabilitação psicossocial à cidadania possível. Instituto Franco Basaglia: Te Corá Editora.

Gallo, S. (2015). Pensar a escola com Foucault: além da sombra da vigilância. Repensar a educação, 40, 427-449

Goffman, E. (1961). Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva.

Guattari, F. (1981). Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. [seleção, prefácio e edição Suely Belinha Rolnik]. São Paulo: Brasiliense.

 

 

 


[1] Texto produzido a partir da experiência de pesquisa que culminou na tese intitulada “Economia solidária, saúde mental e subjetividades: governamentalidade e resistência em um programa de geração de renda no município de Santo André, SP” da mesma autora. Disponível na íntegra em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47134/tde-07122023-103322/pt-br.php, acesso em 23 de abril de 2024.

[2] Esse termo tem diversas conotações em distintas áreas do conhecimento. Aqui, adotamos a ideia dos estudos de Michel Foucault para quem a subjetividade é um produto (no sentido de ser produzido, não no sentido mercadológico), individual ou coletivo, das relações entre diversos saberes e poderes na sociedade, moldando formas de ser e agir no mundo.

[3] Chama-se “doutorado direto” o tipo de titulação stricto sensu que é concedida a um/a pesquisador/a com graduação na área de conhecimento, sem passar pela titulação do mestrado, tornando-se um/a doutor/a “direto”.

[4] Disponível na íntegra em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm, acesso em 23 de abril de 2024.

[5] A expressão “instituição total” é aqui tomada por empréstimo de Goffman (1961) que as entende como estabelecimentos totalmente fechados, funcionando em regime de internação, com grande número de pessoas que lá vivem em tempo integral. Essas instituições funcionam aglutinando em si o local de moradia, lazer, trabalho, terapêutica, etc. É “total” por ser fechado e “total” por abarcar a “totalidade” das “necessidades” das pessoas, reforçando o regime de internação.